Quando Cristo foi crucificado por volta do ano 30/32 da nossa era, o Império Romano ocupava uma vasta área que abrangia desde a Ásia Menor até à Península Ibérica, incluindo a maior parte da Europa e todo o Norte de África. Com o correr dos tempos, e devido à inevitável vitalidade que as línguas têm como coisas vivas que são, o latim popular falado na Dácia acabou por se transformar no actual romeno, tal como o falado na Itália no actual italiano, na Gália no actual francês, na Hispânia no catalão, castelhano, galaico-português, etc., etc.
Durante algum tempo o latim da Roma originária manteve uma aparência de identidade sustentada, sobretudo desde que a Igreja o adoptou como língua eclesiástica e litúrgica antes do início da Alta Idade Média; mas mesmo esse foi sofrendo alterações ao ponto de um estudioso de latim clássico ter dificuldade em entender um texto em latim eclesiástico do século XII ou XIII, por exemplo.
Imaginemos que um folgazão dessas eras, insuflado de ideias “ortografistas”, se lembrava de tentar impor ao latim de Roma uma “grafia unificada” misturando, com as inerentes “facultatividades”, as formas do latim popular gaulês, dácio, lusitano, itálico… Só esta ideia tonta dá vontade de rir, e obviamente nenhum estudioso no seu juízo perfeito a consideraria, a menos que se tratasse de um escritor de ficção científica que inventasse uma novela de “história alternativa” passada num universo paralelo, onde esse caricato fenómeno tivesse ocorrido com todas as suas delirantes (e quiçá interessantíssimas) consequências.
Bom, tudo é possível no fantástico universo das ficções, e tal fantasia até poderia dar origem a um trepidante filme em 3-D com imaginosos efeitos especiais e outros truques que encantassem as plateias.
Ora, por muito estranho que pareça, é isso mesmo que estamos a viver actualmente: um delírio de “ficção científica alternativa”, por obra de uns quantos políticos que decidiram reescrever a nossa história linguística sem atender às naturais e progressivas diferenças por que vai passando uma língua-mãe ao expandir-se no mundo, e à medida que os anos e os séculos transcorrem.
Não é possível espartilhar uma língua viva num colete de forças artificial e grosseiramente político fingindo que a língua-mãe e as línguas-filhas se vão manter sempre iguais e agrilhoadas a um mesmo “acordo”, parido por um pequeno grupo de minicérebros demenciais que não entendem o que é o futuro e, dentro da sua pequenês, só vêem uma estreita nesga do presente.
Tal como o latim irradiou de Roma para o mundo, o português irradiou de um ponto preciso da Europa, Portugal, e, à semelhança do latim do Império Romano, foi-se instalando em diversas geografias e mesclando-se com as respectivas etnias, línguas aborígenes e culturas, e por conseguinte modificando-se diversamente, consoante as áreas em contacto. É uma lei natural e não há que fugir-lhe.
O português falado no Brasil, por exemplo, sobretudo popular, tende cada vez mais a tornar-se uma língua diferenciada, tal como o testemunha o extensíssimo reportório de textos do folclore brasileiro reproduzindo os falares de habitantes do interior do Brasil, em que o português, mesclado com os falares autóctones, se tornou língua própria de vastas e inúmeras comunidades.
Como será o português falado e escrito em Angola, no Brasil, em Cabo Verde, em Portugal, em Moçambique, etc. dentro de cem ou duzentos anos? Não sabemos nem é nossa competência sabê-lo e menos ainda adivinhá-lo. Que nos baste o bom senso de observar a realidade que nos rodeia e compreendê-la e saber respeitá-la nos seus múltiplos matizes e naturais mudanças, lidando cautelosamente com as especificidades das suas variantes e diferenças.
Ora, isto é tudo quanto há de mais contrário à arrogante e pretensiosa atitude do malparido Acordo Ortográfico que à força bruta quer impor um modelo de grafia sem nenhuma base lógica, linguística, sociológica ou meramente humana que o sustente, uma coisa sem pés nem cabeça que no fundo se pulveriza em vários modelos – e cito apenas dois, porque existem, continuam a existir e até aumentam as diferenças ortográficas entre Portugal e o Brasil (para somente citar estes dois casos), como se pode ver na bem fundamentada exposição da Carta Aberta que em 6 de Janeiro de 2013 foi enviada ao ministro da Educação. Lendo-a, arrepiamo-nos e continuamos a interrogar-nos como foi possível levar a cabo semelhante crime.
O que sabemos é que este “linguicídio”, como já lhe chamou com trágico humor a dra. Madalena H. Cardoso, foi perpetrado friamente desde os anos “80 por conhecidos e sonantes nomes da nossa política. Passos Coelho, sem nenhum senso crítico, limitou-se a vir pendurado na última carruagem deste sinistro comboio-fantasma, arrastando a alma linguístico-cultural portuguesa por um trilho de lamacento enxovalho logo trilhado sofregamente pela chusma de interesseiros e/ou bajuladores do costume que esperam sempre lucrar alguma coisa com o delito.
Vejam-se por exemplo os mais de 250 canais de TV que nos entram pela casa adentro todos os dias, e cujas legendagens de filmes e séries-TV chegam a desorientar de tão confusas que ficam. Sendo frases curtas, sem contexto literário, tornam-se por vezes num enigma: se vemos duas personagens a correr e uma diz para a outra: “Para aqui”, ficamos sem saber se lhe está a dizer que se dirija para aqui (movimento), ou que fique parada aqui (ausência de movimento). Com o maior à-vontade a mesma curta frase pode ter dois significados opostos.
Pobre língua portuguesa, esfrangalhada de uma maneira tão boçal como interesseiramente obscura.
Língua que já foi grande na sua ascensão, na pena de Gil Vicente, de Camões, de António Vieira, de Pessoa…
Consentirão os portugueses na sua queda, agora, por obra desta nova “invasão dos bárbaros” que tudo quer nivelar pelo nível mais baixo, menos nobre e mais rasteiro?
António de Macedo
Ex-cineasta, escritor, professor universitário
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